Inimigos
- Traduzido por Carolus M.
- 29 de abr. de 2017
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Imagine, se assim desejar, o seguinte: você encarando o pior pesadelo de todo rei. Rebeldes tramando conspirações, enquanto, ao mesmo tempo, inimigos ameaçam a sua fronteira. Você tem uma escolha: marcha em direção aos invasores para confrontá-los, erradica o sedicioso complô ou tenta fazer as duas coisas ao mesmo tempo? Muitas vidas repousam nesta decisão.
Como sempre, os detalhes específicos da sua situação são os mais cruciais, mas é possível aprender alguns exemplos da própria história. Comecemos pelo imperador romano Cláudio II Gótico, o primeiro dos soldados-imperadores ilíricos que resgatou Roma da crise do século III. Ascendendo ao trono em 268, Cláudio encontrou-se reinando menos de um terço do Império Romano. O ineficaz imperador Galiano perdeu as regiões de Gália, Britânia e Hispânia para os rebeldes liderados pelo usurpador Póstumo, enquanto o Leste caiu sob controle do Império de Palmira da rainha Zenóbia. Essas facções separatistas emergiram porque enquanto a autoridade imperial central estrebuchava, Póstumo e Odenato – marido de Zenóbia – forneceram a proteção esperada de um governo, Póstumo afugentando os Francos e Odenato derrotando os Persas. Ao mesmo tempo, bárbaros germânicos executavam incursões contra o império de Cláudio sem que houvesse intervenção. Após a ascensão de Cláudio, Hispânia rendeu-se, mas havia ainda três inimigos contra os quais deveria lutar.
Cláudio decidiu que os inimigos externos, os Godos, fossem uma ameaça maior e voltou sua atenção a eles. Após tomar território gálico o bastante para restabelecer comunicações terrestres com Hispania, marchou com seu exército para os Bálcãs onde encontrou e derrotou os bárbaros. Embora tenha morrido durante a Peste de Cipriano depois de apenas dois anos como imperador, seu tenente Aureliano deu prosseguimento a sua política, primeiro repelindo os bárbaros e então reunindo o império.
(A propósito, o destino de Tácito – sucessor de Aureliano – é ilustrativo do princípio de que um líder deve fazer parte da classe dominante. Tácito foi o único imperador civil durante este período, e mesmo que tivesse resultado em um governante esplêndido no século II, no século III o exército cresceu em poder e autoridade. É incontestável que as qualidades de Tácito como imperador capaz foram postas à prova, mas não demorou até que o estresse e a tensão de manter suas tropas sob controle esmagasse o velho homem. Os soldados-imperadores não enfrentaram as mesmas dificuldades em comando e provaram-se mais bem-sucedidos.)
A lição que Cláudio nos ensina parece ser de que inimigos externos devem ser priorizados em detrimento dos domésticos, mas devemos ter cuidado antes de tomar isso como verdade. O antagonismo entre os três impérios – o de Cláudio, de Póstumo e de Zenóbia – era de baixa intensidade. Certamente, os dois estados separatistas reivindicaram legitimidade baseados no fato de contribuírem na defesa contra os bárbaros. Contanto que Cláudio focasse sua atenção nos bárbaros, poderia aproveitar uma relativa liberdade e autoridade. Por conseguinte, Aureliano priorizou o Império de Palmira como o argumento de que seria a noz mais difícil de quebrar e os gauleses não seriam capazes de progredir muito contra as forças ocidentais – um cálculo que se provou correto.
Então, você deveria marchar primeiro em direção ao inimigo mais forte? Bem, sim, mas isto não responde à pergunta; apenas a reformula: quem é o maior inimigo, o externo ou o doméstico?
Consideremos um caso mais complexo: o cônsul Sula durante os anos 80 a.C. Durante este período, Sula se encontrou em uma posição extremamente precária na qual um movimento em falso, uma falha dramática, traria ruína a ele e a seu partido. Em primeiro lugar, Mitrídates invadindo a Anatólia e Grécia. Além disso, os Populares – facção de senadores romanos progressistas que se opunham aos Optimates (conservadores), que defendiam uma maior intervenção das assembleias populares, atribuição de cidadania romana a todos que viviam sob domínio do império e reformas agrárias – tornaram-se violentos e perigosos ao ponto de perseguirem Sula pelas ruas de Roma na tentativa de assassiná-lo. O cônsul possuía um exército poderoso e leal, mas a maioria de seus aliados eram uma combinação de desleais e incompetentes, não podendo ele estar em dois lugares ao mesmo tempo. Sula teve de escolher com quem lutar primeiro.
A solução de Sula a esse dilema foi um ato cuidadoso e equilibrado baseado em lidar primeiro não com o mais forte, mas com a ameaça imediata. Ambos os Populares ou Mitrídates eram perfeitamente capazes de destruir Sula se ele permitisse, então qualquer um que estivesse mais próximo enfrentaria sua fúria. Houve uma diferença crucial, no entanto, entre o tratamento de Sula dado aos seus inimigos domésticos e estrangeiros, até que pelo menos Mitrídates fosse suprimido: ele apenas enfrentou os populares quando não tinha outra escolha. Se não tivesse marchado em direção a Roma para remover Sulpício – um dos líderes dos Populares - do Senado, Sula teria sido assassinado; não tendo ele lidado com Fímbria na Grécia, correu o risco de ter sido emboscado por dois exércitos hostis. Porém, quando Cina cortou seus suprimentos e o deixou sem recursos, Sula não navegou de volta à Itália logo em seguida. Ao invés disso, terminou a guerra com Mitrídates primeiro; apenas após tendo derrotado o inimigo estrangeiro voltou a lidar com os rivais internos.
A conclusão de que o inimigo externo tem prioridade se mantém, mas com a ressalva de que o inimigo doméstico às vezes se faz uma infeliz necessidade que deve ser colocada em primeiro lugar. Dois inimigos poderosos são invariavelmente mais perigosos que apenas um, e sair vitorioso de tal competição está longe do trivial. Sula e Mao Tsé-Tung conseguiram escapar; Raoul Salan não.
Os últimos dois, Mao e Salan, chamaram a atenção de Carl Schmitt na Teoria de Partisan. O ensaio por si só se concentra nos aspectos legais do mecanismo de guerra partisan e como evoluíram, focando também em sua posição como teoria militar. O que ele identifica, no entanto, é uma revolta do velho cenário jurídico; o colapso da velha ordem e o começo de uma nova. Esta não foi a única vez que Schmitt apontou as rachaduras: em O Conceito de Política, esclarece que há novos tipos de inimigos cujo Estado, em particular o Estado Liberal, é incapaz de combater efetivamente.
Até este ponto, temos utilizado o termo inimigo como se soubéssemos exatamente o que significa e implica: nosso inimigo é aquele com o qual estamos presos em combate mortal e preparados para matar cujo desejo é presumidamente recíproco. Esta é a definição que Schmitt usa, e certamente se aplica a todos os nossos exemplos, mas há algo oculto nela. Perceba o uso do plural, “nós”. Schmitt retorna ao Latim e apresenta duas palavras que chegaram aos tempos atuais como “inimigo”: inimicus e hostis. Sendo inimicus um “inimigo privado” enquanto que hostis é um “inimigo público”. O homem ao qual eu me oponho é um inimicus, o homem ao qual nós nos opomos é um hostis.
E quem somos “nós”? Quem é o “público” que pode ter inimigos para o alto e além, ou até mesmo em contradição aos cidadãos privados? E quem afinal de contas é o tal cidadão privado? As respostas a essas perguntas são cruciais; por exemplo, se alguém considera espaços seguros (safe spaces) – recente prática desenvolvida por esquerdistas em universidades geralmente se resumindo a espaços que tem por finalidade confortar estudantes de minorias – como seu conceito político operacional, então a distinção entre público e privado evapora, e hostes mistura-se com inimici. Tanto para Schimitt quanto para todos nós, no entanto, o público é um tipo especial de Männerbund, uma “coletividade combatente”, um grupo de homens armados e juntos por um propósito comum. Infelizmente, não há em nossa língua uma boa palavra para este conceito, então cunhemos um novo termo. Para este objetivo, eu escolho “Volk”.
A língua alemã por si só faz com que os esquerdistas se enfureçam, fiquem triggered, sendo “Volk” um termo proibido no vocabulário moderno. Devemos esclarecer o significado desta palavra. “Volk” é um cognato alemão, significando simplesmente “povo”, um grupo de pessoas com uma identidade compartilhada. No presente momento, tem uma conotação antiquada. Num contexto mais antigo, no entanto, seu significado é de um coletivo de pessoas em uniformes militares, como um exército. O termo latino populus tem o mesmo significado e passou pelo mesmo processo evolutivo, originalmente tendo conotação militar e tornando-se mais pacífico ao longo do tempo.
A importância das observações de Mark Yuray a respeito de Männerbünde – termo que resumidamente descreve um grupo de homens em uma hierarquia orgânica que surge do instinto de competitividade intrínseco à natureza masculina – não pode ser exagerada, e a consideração a Völker (comunidade étnica) intensifica e aprofunda as suas reflexões. Männerbünde são a unidade social primordial enquanto Völker são a unidade política irredutível. Nenhum precede o outro historicamente falando: os Männerbünde original foram Völker e vice-versa. Apenas com o desenvolvimento da civilização a distinção entre os dois termos torna-se operacionalmente significativa.
Völker são entidades políticas por um motivo muito simples: um bando coeso de homens armados e capazes de dominarem qualquer poder ou riqueza que desejarem com pouca dificuldade a não ser que haja oposição de força equiparada. Isto é verdade hoje do mesmo modo que foi há mil anos, embora a tecnologia de guerra tenha mudado consideravelmente. É a tecnologia militar que determina qual organização interna é um Völk, e que, portanto, é a sua constituição. Em sociedades fixas, ou seja, o inverso das nômades, há invariavelmente uma classe de guerreiros que desfrutam de privilégios especiais. Nas poleis (cidades da Antiguidade), a classe de guerreiros era identificada por demos (povo) – a cidadania – que por sua vez era submetida a treinamento e serviço militar obrigatórios; na Europa medieval e no Japão Feudal, as classes cavaleiras e samuraicas desempenhavam o mesmo papel. Treinar para combate exige tempo e dinheiro, duas coisas que a maioria de qualquer sociedade, com exceção dos mais abastados, dificilmente conseguiria se dar ao luxo de obter; comida e abrigo são tipicamente as preocupações mais importantes.
Estudantes de história recordarão que nem todas as sociedades são governadas por classes guerreiras, sendo um exemplo disto as burocracias imperiais da China e Roma e a aristocracia civil do Ocidente moderno. Outros, ainda, notarão que mesmo dentro de um Volk há uma aristocracia, as verdadeiras elites da sociedade. Compreendendo esses dois fenômenos torna-se possível considerar dois fatores. O primeiro é a noção de que nem mesmo os guerreiros devotam todo seu tempo treinando e lutando, a maioria gasta grande parte dele em atividades mais produtivas como agricultura e artesanato, entre outras. Os Espartanos e os Samurai são anomalias, a maioria dos Völker são menos profissionais.
O segundo fator é a importância de oficiais em organizações militares, líderes e organizadores. Pastores de pessoas – como diria Homero. Decisões geralmente precisam ser feitas, e é inconveniente consultar o Volk inteiro. Uma vez as decisões tendo sido tomadas, alguém deve convencer o Volk a apoiá-las. A classe de oficiais é a aristocracia do Volk, e a aristocracia deve produzir oficiais do Volk. Estes aristocratas não precisam ser todos guerreiros – certamente, oficiais civis são tão importantes quanto os militares para grandes e complexas sociedades – e nem todos os oficiais precisam vir da aristocracia – certamente, mérito deveria permitir que alguns soldados sejam promovidos e alcancem posições maiores na estrutura hierárquica – mas seja lá a classe a prover a maioria de oficiais, esta, por consequência, constitui a aristocracia.
A precisa natureza da aristocracia varia, mais uma vez, com a tecnologia militar disponível. Repúblicas da Antiguidade eram lideradas por donos de terras ricos que dispunham de armas superiores, treinamento e até cavalos; cavaleiros e samurai eram iguais, embora suas riquezas fossem tipicamente concessões feitas por um senhor feudal ainda mais rico. Nos impérios Romano e Chinês, eram exigidos dos oficiais uma competência administrativa bem como habilidade militar – logo, eram tão burocratas quanto soldados. Entre mercenários – Völker sem nenhum território ou fonte de renda fixos – proeza tática e habilidade em negociar com os empregadores lhes garantiam posições favoráveis. Antes da Segunda Guerra Mundial no Ocidente, oficiais vinham de uma aristocracia de riqueza, nascendo de família nobre ou recebendo uma educação superior - ou ambos, sendo comandantes respeitáveis por sua superioridade natural apoiada por uma coragem pessoal. Oficiais se colocaram a frente de seus homens, lideraram as batalhas em pessoa e morreram a taxas vertiginosas.
Retornemos ao problema original e vejamos o que podemos aplicar ao mundo real da atualidade. Agora, há um problema maior, algo ainda pior que escolher qual inimigo combater primeiro: não estamos em uma posição de tomar a decisão desse dilema, ou ainda determinar se de fato é algo que deve ser levado em consideração.
Através dos espaços das raivosas batalhas pelo mundo, das salas de aula às redações de jornais e em toda a parte, não comandamos sequer um homem; nenhum batalhão obedece nossas ordens. E nenhum deveria. Não somos dignos de comandar. Devemos nos aprimorar antes de desejarmos comandar os outros.
A forma com a qual fazemos isto, e o modo como provamos o nosso valor é galgando nosso próprio espaço e governando-o. Seu Männerbund, sua família, sua casa, você próprio: essas coisas devem ser cultivadas e protegidas do perigo. Estude os caminhos dos seus antepassados; pratique virtude; ensine outros a fazerem o mesmo. Através destes atos você então demonstra seu valor; através destes atos você assume o poder dentro do seu próprio espaço; através destes atos você governa seu reino da melhor forma.
GRANT, D. Enemies. Social Matter - Statecraft For American Restoration, 2017. Disponivel em: <http://www.socialmatter.net/2017/01/19/enemies/>. Acesso em: 06 fev. 2017.

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